Pendentes

18-06-2013 19:42

Era tarde e ela não havia meio de bater à porta. Rebolei-me na cadeira e comecei a rever mentalmente as suas últimas palavras. Confortavelmente apoiado, iludi a dor da sua ausência e do antebraço. Passaram 3 horas e aquele ´fica bem´ soara-me a adeus. Os assuntos pendentes costumam enervar-me mas, no caso dela, alimentavam-me a esperança de um reencontro. Infeliz, mas reencontro. Sei de histórias redondas, feitas de pendentes propositadamente renovados, em que cada interjeição, cada hesitação verbal, conta como um pretexto para um novo tema de (des)acordo sobre o qual é preciso reflectir, preferencialmente com urgência, muita urgência, cara-a-cara. E assim sucessivamente. Antes fosse este o caso. Passaram 3 horas e apenas reconheço em mim essa urgência a que me refiro, a ansiedade do seu toque, mesmo que amargurado pela discussão que adivinho. Resisto à tentação de abrir a tarte que está ao meu lado, preparada carinhosamente para o almoço de um dia especial, abruptamente rejeitada horas antes e que consegui fazer escapar à gula das inesperadas visitas da ocasião, às quais me estupidamente me verguei. Resisto também ao formigueiro do pé esquerdo sobre o qual estou sentado vai para mais de meia hora. Acho agora, como há 3 horas, que as nossas razões não se confundem, não se tocam. São como discursos paralelos, passíveis de ser feitos a audiências diferentes, e sem qualquer ponto de contacto. Ambas críveis e defensáveis, conforme a perspectiva e autor do discurso, a sua lógica e o tempo que coloca nos verbos. Este pensamento perturba-me de vez por perceber à clarividência a pacificidade da situação, a inexistência de pendentes, a imensa calmaria de umas águas paradas. E esse cenário intranquiliza-me e descontrola-me, mais ainda do que a arrogância e orgulho das minhas palavras naquele almoço interrompido e invadido por estranhos, que a perturbaram ao ponto de sair. Resta-me o consolo de aumentar ao meu espólio de conversas de serão com mais um episódio teatral. Posso finalmente abrir esta tarte triste pousada na mesa, o único pendente que me resta dela, para além do rasto do seu perfume na sala.